Excelente dica da Pat, na lista de editores da Rede Humaniza SUS:
Foi ele mesmo que me contou, como confissão de cegueira, dando depois permissão para que eu relatasse o milagre desde que não revelasse o santo. Médico, chegou a seu consultório com seus olhos perfeitos e a cabeça cheia de pensamentos. Eram pensamentos graves, cirurgias, hospitais, e os doentes o aguardavam na sala de espera.
Entrou o primeiro paciente que se submeteu mansamente à apalpação médica. Terminada a consulta, escrita a receita, no ato da despedida ele fez um elogio: “Doutor, que lindas são as orquídeas na sua sala de espera!”
Meu amigo sorriu embaraçado, com vergonha de dizer que não havia notado orquídea alguma na sala de espera e que, portanto, não sabia da beleza que o doente notara. Teve vergonha de revelar a sua cegueira. Entrou o segundo paciente. Ao final da consulta, sem conseguir conter o que sentia, observou: “São maravilhosas as orquídeas na sua sala de espera, doutor!” Novamente o sorriso amarelo, sem poder dizer o que não sabia sobre as orquídeas que não havia visto.
Veio o terceiro paciente e a coisa se repetiu do mesmo jeito. Aí o doutor deu uma desculpa, saiu da sala, e foi ver as orquídeas que o jardineiro colocara na sala de espera. Eram, de fato, lindas. Mas aí veio o agravante, pois o paciente, não satisfeito com a humilhação imposta ao doutor cego, observou que, na semana anterior, a árvore dentro da sala de consulta, plantada num vaso imenso, num canto, não era a mesma que ali estava, naquele dia. Mas o doutor cego de olhos perfeitos não notara a presença de árvore naquele dia nem a presença da árvore na semana anterior...
Ah! Você espera que tal cegueira possa existir! Mas eu lhe garanto que é assim que funcionam os olhos dos adultos em geral.
Lá vão pelo caminho a mãe e a criança, que vai sendo arrastada pelo braço – segurar pelo braço é mais eficiente que segurar pela mão. Vão os dois pelo mesmo caminho, mas não vão pelo mesmo caminho. Blake dizia que a árvore que o tolo vê não é a mesma árvore que o sábio vê. Pois eu digo que o caminho por que a mãe anda não é o mesmo caminho por que anda a criança.
Os olhos da criança vão como borboletas, pulando de coisa em coisa, para cima, para baixo, para os lados, é uma casca de cigarra num tronco de árvore, quer parar para pegar, a mãe lhe dá um puxão, a criança continua, logo adiante vê o curiosíssimo espetáculo de dois cachorros num estranho brinquedo, um cavalgando o outro, quer que a mãe também veja, com certeza ela vai achar divertido, mas ela, ao invés de rir, fica brava e dá um puxão mais forte, aí a criança vê uma mosca azul flutuando inexplicavelmente no ar, que coisa mais estranha, que cor mais bonita, tenta pegar a mosca, mas ela foge, seus olhos batem então numa amêndoa no chão e a criança vira jogador de futebol, vai chutando a amêndoa, depois é uma vagem seca de flamboyant pedindo pra ser chacoalhada, assim vai a criança, à procura dos que moram em todos os caminhos, que divertido é andar, pena que a mãe não saiba andar por não ter os olhos que saibam brincar, ela tem é muita pressa, é preciso chegar, há coisas urgentes a fazer, seu pensamento está nas obrigações de dona de casa, por isso vai dando safanões nervosos na criança, se ela conseguisse ver e brincar com os brinquedos que moram no caminho, ela não precisaria fazer análise...
A mãe caminha com passos resolutos, adultos, de quem sabe o que quer, olhando pra frente e para o chão. Olhando para o chão ela procura as pedras no meio do caminho, não por amor a Drummond, mas para não dar topadas, e procura também as poças d’água, não porque tenha se comovido com o lindo desenho do Escher de nome Poça D’água, uma poça de água suja na qual se refletem o céu azul e os ramos verdes dos pinheiros, ela procura as poças para não sujar o sapato. A pedra do Drummond e a poça de água suja do Escher os adultos não vêem, só as crianças e os artistas...
A mãe não nasceu assim. Pequenina, seus olhos eram iguais aos do filho que ela arrasta agora. Eram olhos vagabundos, brincalhões, que olhavam as coisas para brincar com elas. As coisas vistas são gostosas, para ser brincadas. E é por isso que os nenezinhos têm esse estranho costume de botar na boca tudo o que vêem, dizendo que tudo é gostoso, tudo é para ser comido, tudo é para ser colocado dentro do corpo. O que os olhos desejam, realmente, é comer o que vêem. Assim dizia Neruda, que confessava ser capaz de comer as montanhas e beber os mares. Os olhos nascem brincalhões e vagabundos – vêem pelo puro prazer de ver, coisa que, vez por outra, aparece ainda nos adultos no prazer de ver figuras. Mas aí a mãe foi sendo educada, numa caminhada igual a essa, sua mãe também a arrastava pelo braço e, quando ela tropeçava numa pedra ou pisava numa poça d’água, porque seus olhos estavam vagabundeando por moscas azuis e cachorros sem-vergonha, sua mãe lhe dava um safanão e dizia: “Olha pra frente, menina!”
“Olha pra frente!” Assim são os olhos adultos. Olhos não são brinquedos, são limpa-trilhos. Servem para abrir caminhos na direção do que se deve fazer. Assim eram os olhos daquela minha amiga que os usava para cortar cebola sem cortar o dedo, até que, um dia, o olho que morava dentro dos seus olhos se abriu e ela viu a beleza maravilhosa do vitral translúcido que mora nas rodelas de todas as cebolas, e ela tanto se espantou com o que via que pensou que estava ficando louca.
Coitados dos adultos. Arrancam os olhos vagabundos e brincalhões de crianças e os substituem por olhos ferramentas de trabalho, limpa-trilhos. Asssim eram os olhos daquele meu amigo médico: não viam nem as orquídeas nem as árvores que estavam dentro do seu consultório. Seus olhos eram escravos do dever. E ele não percebia que as coisas ao seu redor eram brinquedos que pediam aos seus olhos: “Brinquem comigo! É tão divertido! Se vocês brincarem comigo, eu ficarei feliz, e vocês ficarão felizes...”
Rubem Alves
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