segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Para além da inclusão sócio-digital: dos jogos de mercado como objetos de política pública



A palavra inclusão aparece como referência constante em diversas formas de descrição e apresentação de programas, projetos e experiências na política pública de forma praticamente unânime entre os mais diversos entendimentos e posicionamentos das chamadas políticas sociais. Aparecendo, de forma geral, com o sentido de incluir àqueles que não tem acesso a determinados bens materiais, serviços e identificação nas máquinas de governabilidade públicas e privadas, seja por falta de alcance dos mecanismos e possibilidades de articulação das estruturas políticas em ação ou seja pelo entendimento de que as estruturas que fornecem acesso não devem ser geridas pelo própria máquina pública, a inclusão serve como conceito que abre um campo de atuação e serve como critério de análise do que pode estar dentro ou fora.

Visto dessa forma, a inclusão se torna conceito operatório de produção e entendimento do que deveria balizar e sustentar as condições de aplicabilidade de uma política pública. Em outras palavras, se a política é inclusiva, ela dá acesso a determinados valores e modos de vida que entendemos serem necessários para sustentar a condição social ideal visualizada pela política em operação. Se a política não é inclusiva, ela segmenta, classifica, filtra, escolhe favorecer e empoderar aqueles que aparentemente já estão inseridos nas redes de circulação dos serviços e bens ofertados pelas máquinas da governabilidade. O critério que esse conceito operatório facilmente coloca à vista é qual o corte do que se entende por incluído e por excluído, que métodos de medição e análise são utilizados por uma política para operar essa divisão, entendendo que essa divisão explicita uma escolha, um campo de atuação e, sobretudo, intervenção que a política em questão se propõe a lidar. É a possibilidade de análise dessa segmentação e dos critérios atrelados a ela que nos permite reposicionar a questão sobre o conceito de inclusão e como ele vem sendo utilizado em nossas políticas públicas em vigência atualmente.
Vale aqui explicar, clareando algumas pré-condições como ponto de partida para a breve análise que aqui se estabelece, que o título desse artigo inclui a palavra “digital” na relação com inclusão social com uma intenção clara no que se refere a dimensão digital como mais um espaço, um universo e um campo de produção de diferentes formas e tipos de sociabilidade. Entende-se, desse modo, que essa dimensão é vista como um espaço de relacionamento humano que pode e é visto por determinadas políticas públicas como campo de intervenção e presença das máquinas de governabilidade que colocamos aqui em análise. A inclusão digital é vista aqui como o acesso a esse espaço de relacionamento humano, a esses canais e redes de interação, apenas acessíveis pelo uso de determinadas tecnologias, que constroem e pautam fluxos de comunicação, bens materiais e imateriais, serviços, formas de ativismo, atravessando e sendo atravessado pelas outras tantas dimensões de sociabilidade nas quais se percebem os espaços de relacionamento humano. O conceito, os critérios do que está dentro e do que está fora, além das formas de operação que a expressão “inclusão” fornece à ação de uma política pública permitem intervir também através do digital como espaço de governabilidade, sobretudo, daquilo que se entende como uma ação social proposta por uma política.
Mais do analisar a questão do digital, se pretende aqui analisar a questão da inclusão como modo de intervenção no social. Bruno Latour (2012) resgata a etimologia da palavra “social” explicitando com mais clareza sobre o quê incluir ou não incluir está se falando aqui.

A etimologia da palavra “social” em si é bastante instrutiva. A raiz é seq-, sequi, e a primeira acepção é “seguir”. O latim socius denota um companheiro, um associado. Nas diferentes línguas, a genealogia histórica da palavra “social” designa primeiro “seguir alguém” e depois “alistar” e “aliar-se a”, para finalmente exprimir “alguma coisa em comum”. (…) “Social” como em “problemas sociais” ou “questão social” é uma inovação do século 19. O vocábulo paralelo “sociável” alude à capacidade que tem o indivíduo de de viver polidamente em sociedade” (Latour, 2012, pag. 24).

Mas, que coisa em comum é essa e que nível de inserção é esse que permite viver polidamente em sociedade? Como surge a questão social como um espaço de intervenção que dá condições e sustenta o surgimento de um sem número de políticas públicas, logo, estratégias de governabilidade? De que modo incluir tem a ver com condicionar modos de vida e inserir em fluxos de operação da máquina governamental já conhecidos, sustentando e sendo sustentados por condições que mantém as ordens dominantes instauradas?
Há uma forma de pensamento que vale aqui explicitar, mesmo que de forma esquemática e reducionista, com a intenção de colocar de modo mais claro que relação é essa entre “inclusão”, “social” e “governo” que está posta nesse espaço de análise que se estabelece. Inclusão vem sendo aqui descrita como um conceito operatório que viabiliza determinadas políticas públicas, permitindo estabelecer critérios do que está incluído e do que deve ser objeto de atuação do governo para promoção da inclusão. Logo, o governo atua, de certa forma, intervindo nessa “questão social” com o objetivo de pautar determinadas condições de vida em sociedade. Que condições são essas?
Tendo estabelecido aqui alguns princípios de entendimento do conceito “inclusão” e “social”, vale aqui avançar um pouco mais conceituando como se pode entender o conceito de “governo” para tocarmos em algumas das questões que foram aqui levantadas.

... governo, aqui, é um modo de conceitualizar todos aqueles programas, estratégias e táticas para a condução da conduta, mais ou menos racionalizados, para agir sobre as ações dos outros de maneira a alcançar certos fins. Nesse sentido, pode-se falar em governo de um navio, de uma família, de uma prisão ou fábrica, de uma colônia e de uma nação, assim como de um governo de si” (ROSE, 2011, pag. 25).

Chega-se aqui a um ponto interessante de posicionamento desses conceitos. Governa-se para agir sobre os outros, para conduzir conduta. O sociável e a questão social torna-se campo de intervenção, modo de atuar para induzir e promover determinados tipos de conduta e modos de ação desejados. Incluir torna-se modo de produzir políticas públicas que tenham por intenção estabelecer critérios do que está dentro e do que está fora desses modos de sociabilidade polidos e desejados pelo governo das condutas.
No entanto, essa governança de conduta não acontece nos tempos em que vivemos de modo aleatório. Vive-se sob a influência de um tipo de racionalidade fundamentalmente influenciada por questões de fundo econômico e financeiro. Os parâmetros de renda e padrões de consumo servem de critérios de regulação de inúmeras formas do que condiciona os modos de vida e espaços de sociabilidade por onde os seres humanos interagem e se produzem mutuamente. O que serve de critério entre incluído e excluído se baseia diretamente nos indicadores econômicos que categorizam as diferentes classes, comunidades e formas de segregação.
Buscando entender como o jogo econômico pauta as formas de governo atuais, Foucault (2008b) deixa claro o que define esse critério do incluído/excluído que aqui se coloca em evidência.

Ora, essa ideia de que deve haver uma regra de não-exclusão e de que a função da regra social, da regulamentação social, da seguridade social no sentido amplo do termo deve ser a de garantir pura e simplesmente a não-exclusão de um jogo econômico que, fora disso, deve se desenrolar por si mesmo, é essa ideia que é aplicada, esboçada em todo caso, em toda uma série de medidas mais ou menos claras” (FOUCAULT, 2008b, pag. 278).

Logo, as políticas de inclusão, sejam elas a partir dos espaços do digital ou não, vistas dessa forma tornam-se estratégias de um governo visando a inserção das condutas por dentro desse jogo econômico, entendendo que uma vez inseridas no jogo o próprio jogo têm condições de se regular, operando a partir de estratégias que deixam de serem espaços de atuação do governo para serem espaços de atuação do mercado. Criar condições de consumo, criar condições de se posicionar em algum lugar no jogo econômico é, portanto, posicionar as bases dos modos de vida que essa governança de condutas pretende estabelecer. Garantir que o espaço de liberdade seja o espaço de liberdade do mercado, ou seja, que a liberdade se dê a partir das regras de funcionamento e dos contornos estabelecidos pelo mercado é garantir a eficácia e os critérios de sucesso das políticas de inclusão, melhorando níveis de renda e condições de inserção num jogo para o qual o próprio governo foi pensado e construído para manter.
É disso que se trata, em sua grande maioria, as políticas públicas de inclusão produzidas no âmbito de governos constituídos como neoliberais, sendo sustentados e mantidos como condições de existência e garantias da liberdade dos próprios mercados que os produzem. Se a possibilidade de livre comércio é o interesse maior no jogo de interesses do que está em disputa, o papel do governo é garantir que ele ocorra, produzindo condições para que se amplie nas esferas em que ainda não atua, incluindo no “social” os que estão fora do jogo.
Vale dizer que aqui não se coloca um juízo de valor explícito, afirmando que esse modo de entender os conceitos que analisamos defina essas políticas como negativas ou num sentido depreciativo qualquer. Ao contrário. O que aqui se objetiva é estabelecer alguns critérios de análise para que se perceba com um pouco mais de clareza o que de fato parece estar em jogo. É apenas entendendo como tem se produzido esses espaços de atuação que temos melhores condições de se ver dentro do próprio jogo, percebendo que papel ocupa, que discurso sustenta e se esse discurso parece operar políticas em direção ao que de fato desejamos ou a um jogo econômico que talvez ainda não se tenha percebido como o que tem regulado os modos de vida e fazer político atuais.
Logo, já encaminhando para algumas ainda breves conclusões que tiramos dessas relações estabelecidas, falar de questões como empoderamento coletivo, constituição de sujeitos autônomos e a possibilidade de produzir espaços de co-gestão é falar de outros jogos que parecem não dialogar e serem compatíveis com essa busca contínua da eficácia financeira e econômica desse modo de governar. Além disso, é falar de outras possibilidades que criem condições e funcionem como outros modos de operar política que não a visão da inclusão nos jogos de mercado.
É novamente Foucault (2008a) que parece dar pistas interessantes de posicionamento do olhar para além desse jogo:

Então, frente a essa política global do poder se fazem revides locais, contra-ataques, defesas ativas e às vezes preventivas. Nós não temos que totalizar o que apenas se totaliza do lado do poder e que só poderíamos totalizar restaurando formas representativas de centralismo e de hierarquia. Em contrapartida, o que temos de fazer é instaurar ligações laterais, todo um sistema de redes, de bases populares” (FOUCALT, 2008a, pag. 74).

É para além dos jogos de mercado, para além da economia como critério que determina modos de relacionamento e condiciona modos de vida que outros níveis de pensamento abrem espaço e permitem operar em estruturas de representatividade que não reproduzam essas formas de centralismo e hierarquia que são as condições de base da própria existência dos modos de governabilidade atuais. É por outro caminho que deslocamos essa racionalidade e abrimos espaço para outras formas. É por outras condições de relação, onde os posicionamentos se lateralizam, onde o coletivo opera como aquele que constrói contorno, que define seu espaço e se vê como agente de seu próprio modo de vida que outras redes são possíveis, que outros fluxos de interação podem ser pensados. E nisso, sem dúvida, a dimensão do digital pode colaborar na produção de outros jogos de relacionamento, não como condição de partida, mas como condição de apropriação de uma racionalidade que lhe antecede e opera por outros valores.

Referências
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Graal. 26ed. 2008a. 295p.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Martins Fontes. 2008b. 474p.
LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do Ator-Rede. Edufba/Edusc. 2012. 399p.
ROSE, Nikolas. Inventando nossos selfs: psicologia, poder e subjetividade. Vozes. 2011. 308p.

2 comentários:

Ricardo disse...

Gostei, Dalton.
Acrescentaria, socorrendo-me no Foucault que você cita, que questão não é mais a do "livre mercado", como na governamentalidade liberal do século XVIII, XIX. A governamentalidade neoliberal não está mais centrada e assentada no "livre mercado", mas na "empresa competitiva". Essa é a principal "linha de inclusão"! Competir, ampliando seu capital humano!
As redes digitais têm uma implicação radical nesse processo bioeconômico e há lutas que se processarão na intimidade desse tecido vital. Precisamos entendê-lo em minúcias... :-)
Abs,
Ricardo

Dalton Martins disse...

Com ctz, Ricardo.
A questão da empresa competitiva é ainda algo que preciso entender mais, perceber como isso tem operado, apesar de sentir na própria pelo um pouco do que você tá colocando.
Simbora entender em minúcias! :-)))

abs,
Dalton