A palavra inclusão aparece como
referência constante em diversas formas de descrição e
apresentação de programas, projetos e experiências na política
pública de forma praticamente unânime entre os mais diversos
entendimentos e posicionamentos das chamadas políticas sociais.
Aparecendo, de forma geral, com o sentido de incluir àqueles que não
tem acesso a determinados bens materiais, serviços e identificação
nas máquinas de governabilidade públicas e privadas, seja por falta
de alcance dos mecanismos e possibilidades de articulação das
estruturas políticas em ação ou seja pelo entendimento de que as
estruturas que fornecem acesso não devem ser geridas pelo própria
máquina pública, a inclusão serve como conceito que abre um campo
de atuação e serve como critério de análise do que pode estar
dentro ou fora.
Visto dessa forma, a inclusão se torna conceito
operatório de produção e entendimento do que deveria balizar e
sustentar as condições de aplicabilidade de uma política pública.
Em outras palavras, se a política é inclusiva, ela dá acesso a
determinados valores e modos de vida que entendemos serem necessários
para sustentar a condição social ideal visualizada pela política
em operação. Se a política não é inclusiva, ela segmenta,
classifica, filtra, escolhe favorecer e empoderar aqueles que
aparentemente já estão inseridos nas redes de circulação dos
serviços e bens ofertados pelas máquinas da governabilidade. O
critério que esse conceito operatório facilmente coloca à vista é
qual o corte do que se entende por incluído e por excluído, que
métodos de medição e análise são utilizados por uma política
para operar essa divisão, entendendo que essa divisão explicita uma
escolha, um campo de atuação e, sobretudo, intervenção que a
política em questão se propõe a lidar. É a possibilidade de
análise dessa segmentação e dos critérios atrelados a ela que nos
permite reposicionar a questão sobre o conceito de inclusão e como
ele vem sendo utilizado em nossas políticas públicas em vigência
atualmente.
Vale aqui explicar, clareando algumas pré-condições
como ponto de partida para a breve análise que aqui se estabelece,
que o título desse artigo inclui a palavra “digital” na relação
com inclusão social com uma intenção clara no que se refere a
dimensão digital como mais um espaço, um universo e um campo de
produção de diferentes formas e tipos de sociabilidade. Entende-se,
desse modo, que essa dimensão é vista como um espaço de
relacionamento humano que pode e é visto por determinadas políticas
públicas como campo de intervenção e presença das máquinas de
governabilidade que colocamos aqui em análise. A inclusão digital é
vista aqui como o acesso a esse espaço de relacionamento humano, a
esses canais e redes de interação, apenas acessíveis pelo uso de
determinadas tecnologias, que constroem e pautam fluxos de
comunicação, bens materiais e imateriais, serviços, formas de
ativismo, atravessando e sendo atravessado pelas outras tantas
dimensões de sociabilidade nas quais se percebem os espaços de
relacionamento humano. O conceito, os critérios do que está dentro
e do que está fora, além das formas de operação que a expressão
“inclusão” fornece à ação de uma política pública permitem
intervir também através do digital como espaço de governabilidade,
sobretudo, daquilo que se entende como uma ação social proposta por
uma política.
Mais do analisar a questão do digital, se pretende
aqui analisar a questão da inclusão como modo de intervenção no
social. Bruno Latour (2012) resgata a etimologia da palavra “social”
explicitando com mais clareza sobre o quê incluir ou não incluir
está se falando aqui.
“A etimologia da palavra “social” em si é
bastante instrutiva. A raiz é seq-, sequi,
e a primeira acepção é “seguir”. O latim socius
denota um companheiro, um associado. Nas diferentes línguas, a
genealogia histórica da palavra “social” designa primeiro
“seguir alguém” e depois “alistar” e “aliar-se a”, para
finalmente exprimir “alguma coisa em comum”. (…) “Social”
como em “problemas sociais” ou “questão social” é uma
inovação do século 19. O vocábulo paralelo “sociável” alude
à capacidade que tem o indivíduo de de viver polidamente em
sociedade” (Latour, 2012, pag. 24).
Mas, que coisa em comum é essa e que nível de
inserção é esse que permite viver polidamente em sociedade? Como
surge a questão social como um espaço de intervenção que dá
condições e sustenta o surgimento de um sem número de políticas
públicas, logo, estratégias de governabilidade? De que modo incluir
tem a ver com condicionar modos de vida e inserir em fluxos de
operação da máquina governamental já conhecidos, sustentando e
sendo sustentados por condições que mantém as ordens dominantes
instauradas?
Há uma forma de pensamento que vale aqui explicitar,
mesmo que de forma esquemática e reducionista, com a intenção de
colocar de modo mais claro que relação é essa entre “inclusão”,
“social” e “governo” que está posta nesse espaço de análise
que se estabelece. Inclusão vem sendo aqui descrita como um conceito
operatório que viabiliza determinadas políticas públicas,
permitindo estabelecer critérios do que está incluído e do que
deve ser objeto de atuação do governo para promoção da inclusão.
Logo, o governo atua, de certa forma, intervindo nessa “questão
social” com o objetivo de pautar determinadas condições de vida
em sociedade. Que condições são essas?
Tendo estabelecido aqui alguns princípios de
entendimento do conceito “inclusão” e “social”, vale aqui
avançar um pouco mais conceituando como se pode entender o conceito
de “governo” para tocarmos em algumas das questões que foram
aqui levantadas.
“... governo, aqui, é um modo de conceitualizar todos
aqueles programas, estratégias e táticas para a condução da
conduta, mais ou menos racionalizados, para agir sobre as ações dos
outros de maneira a alcançar certos fins. Nesse sentido, pode-se
falar em governo de um navio, de uma família, de uma prisão ou
fábrica, de uma colônia e de uma nação, assim como de um governo
de si” (ROSE, 2011, pag. 25).
Chega-se aqui a um ponto interessante de posicionamento
desses conceitos. Governa-se para agir sobre os outros, para conduzir
conduta. O sociável e a questão social torna-se campo de
intervenção, modo de atuar para induzir e promover determinados
tipos de conduta e modos de ação desejados. Incluir torna-se modo
de produzir políticas públicas que tenham por intenção
estabelecer critérios do que está dentro e do que está fora desses
modos de sociabilidade polidos e desejados pelo governo das condutas.
No entanto, essa governança de conduta não acontece
nos tempos em que vivemos de modo aleatório. Vive-se sob a
influência de um tipo de racionalidade fundamentalmente influenciada
por questões de fundo econômico e financeiro. Os parâmetros de
renda e padrões de consumo servem de critérios de regulação de
inúmeras formas do que condiciona os modos de vida e espaços de
sociabilidade por onde os seres humanos interagem e se produzem
mutuamente. O que serve de critério entre incluído e excluído se
baseia diretamente nos indicadores econômicos que categorizam as
diferentes classes, comunidades e formas de segregação.
Buscando entender como o jogo econômico pauta as
formas de governo atuais, Foucault (2008b) deixa claro o que define
esse critério do incluído/excluído que aqui se coloca em
evidência.
“Ora, essa ideia de que deve haver uma regra de
não-exclusão e de que a função da regra social, da regulamentação
social, da seguridade social no sentido amplo do termo deve ser a de
garantir pura e simplesmente a não-exclusão de um jogo econômico
que, fora disso, deve se desenrolar por si mesmo, é essa ideia que é
aplicada, esboçada em todo caso, em toda uma série de medidas mais
ou menos claras” (FOUCAULT, 2008b, pag. 278).
Logo, as políticas de inclusão, sejam elas a partir
dos espaços do digital ou não, vistas dessa forma tornam-se
estratégias de um governo visando a inserção das condutas por
dentro desse jogo econômico, entendendo que uma vez inseridas no
jogo o próprio jogo têm condições de se regular, operando a
partir de estratégias que deixam de serem espaços de atuação do
governo para serem espaços de atuação do mercado. Criar condições
de consumo, criar condições de se posicionar em algum lugar no jogo
econômico é, portanto, posicionar as bases dos modos de vida que
essa governança de condutas pretende estabelecer. Garantir que o
espaço de liberdade seja o espaço de liberdade do mercado, ou seja,
que a liberdade se dê a partir das regras de funcionamento e dos
contornos estabelecidos pelo mercado é garantir a eficácia e os
critérios de sucesso das políticas de inclusão, melhorando níveis
de renda e condições de inserção num jogo para o qual o próprio
governo foi pensado e construído para manter.
É disso que se trata, em sua grande maioria, as
políticas públicas de inclusão produzidas no âmbito de governos
constituídos como neoliberais, sendo sustentados e mantidos como
condições de existência e garantias da liberdade dos próprios
mercados que os produzem. Se a possibilidade de livre comércio é o
interesse maior no jogo de interesses do que está em disputa, o
papel do governo é garantir que ele ocorra, produzindo condições
para que se amplie nas esferas em que ainda não atua, incluindo no
“social” os que estão fora do jogo.
Vale dizer que aqui não se coloca um juízo de valor
explícito, afirmando que esse modo de entender os conceitos que
analisamos defina essas políticas como negativas ou num sentido
depreciativo qualquer. Ao contrário. O que aqui se objetiva é
estabelecer alguns critérios de análise para que se perceba com um
pouco mais de clareza o que de fato parece estar em jogo. É apenas
entendendo como tem se produzido esses espaços de atuação que
temos melhores condições de se ver dentro do próprio jogo,
percebendo que papel ocupa, que discurso sustenta e se esse discurso
parece operar políticas em direção ao que de fato desejamos ou a
um jogo econômico que talvez ainda não se tenha percebido como o
que tem regulado os modos de vida e fazer político atuais.
Logo, já encaminhando para algumas ainda breves
conclusões que tiramos dessas relações estabelecidas, falar de
questões como empoderamento coletivo, constituição de sujeitos
autônomos e a possibilidade de produzir espaços de co-gestão é
falar de outros jogos que parecem não dialogar e serem compatíveis
com essa busca contínua da eficácia financeira e econômica desse
modo de governar. Além disso, é falar de outras possibilidades que
criem condições e funcionem como outros modos de operar política
que não a visão da inclusão nos jogos de mercado.
É novamente Foucault (2008a) que parece dar pistas
interessantes de posicionamento do olhar para além desse jogo:
“Então, frente a essa política global do poder se
fazem revides locais, contra-ataques, defesas ativas e às vezes
preventivas. Nós não temos que totalizar o que apenas se totaliza
do lado do poder e que só poderíamos totalizar restaurando formas
representativas de centralismo e de hierarquia. Em contrapartida, o
que temos de fazer é instaurar ligações laterais, todo um sistema
de redes, de bases populares” (FOUCALT, 2008a, pag. 74).
É para além dos jogos de mercado, para além da
economia como critério que determina modos de relacionamento e
condiciona modos de vida que outros níveis de pensamento abrem
espaço e permitem operar em estruturas de representatividade que não
reproduzam essas formas de centralismo e hierarquia que são as
condições de base da própria existência dos modos de
governabilidade atuais. É por outro caminho que deslocamos essa
racionalidade e abrimos espaço para outras formas. É por outras
condições de relação, onde os posicionamentos se lateralizam,
onde o coletivo opera como aquele que constrói contorno, que define
seu espaço e se vê como agente de seu próprio modo de vida que
outras redes são possíveis, que outros fluxos de interação podem
ser pensados. E nisso, sem dúvida, a dimensão do digital pode
colaborar na produção de outros jogos de relacionamento, não como
condição de partida, mas como condição de apropriação de uma
racionalidade que lhe antecede e opera por outros valores.
Referências
FOUCAULT, Michel.
Microfísica do poder.
Graal. 26ed. 2008a. 295p.
FOUCAULT, Michel.
Nascimento da biopolítica.
Martins Fontes. 2008b. 474p.
LATOUR, Bruno.
Reagregando o social: uma introdução à teoria do
Ator-Rede. Edufba/Edusc. 2012.
399p.
ROSE, Nikolas.
Inventando nossos selfs: psicologia, poder e subjetividade.
Vozes. 2011. 308p.
2 comentários:
Gostei, Dalton.
Acrescentaria, socorrendo-me no Foucault que você cita, que questão não é mais a do "livre mercado", como na governamentalidade liberal do século XVIII, XIX. A governamentalidade neoliberal não está mais centrada e assentada no "livre mercado", mas na "empresa competitiva". Essa é a principal "linha de inclusão"! Competir, ampliando seu capital humano!
As redes digitais têm uma implicação radical nesse processo bioeconômico e há lutas que se processarão na intimidade desse tecido vital. Precisamos entendê-lo em minúcias... :-)
Abs,
Ricardo
Com ctz, Ricardo.
A questão da empresa competitiva é ainda algo que preciso entender mais, perceber como isso tem operado, apesar de sentir na própria pelo um pouco do que você tá colocando.
Simbora entender em minúcias! :-)))
abs,
Dalton
Postar um comentário